segunda-feira, 16 de maio de 2011

Um homem deve fazer o que ama

Noite poluída. Aline e Carlos. É ela quem quebra o silêncio:
- E então?
- Oi.
- Que faremos?
- Que faremos sobre o quê?
- Sobre o dinheiro, o quê mais?
- Sobre o dinheiro...
- É. O quê faremos sobre o dinheiro?
- Você nunca está satisfeita.
- Você prometeu.
- Eu sei.
- Não podemos continuar assim, você sabe.
- Eu sei.
- Não perdoarão mais um mês de aluguel, você sabe.
- É.
- É o quê, Carlos!? O quê você fará? Só vejo você nesse maldito computador a noite toda. Estagnado no seu empreguinho de manhã e de tarde, e de noite esse maldito computador. Já faz três anos, você prometeu não se acomodar.
- Lá vem você com esse tom de voz.
- Você está numa boa, né? Não dá a mínima se amanhã ou depois nos jogarem no olho da rua e tenhamos que ir viver num cortiço qualquer, numa favela.
- Tendo banda larga não vejo do que reclamar.
- O quê!?
- Estou brincando.
- Sim, esse é problema, você está brincando. Está sempre brincando! Não vê que isso é sério. Eu não sei o que ainda estou fazendo com você, sinceramente.
- Você me ama.
- Infelizmente.
- Amor, você pode não perceber ou não acreditar, mas eu estou me esforçando.
- Há, claro!
- Mês passado ganhei quatrocentos e setenta dólares jogando. É mais do que ganho na Secretaria.
- É e no retrasado perdeu trezentos e dez, e no re-retrasado perdeu umas cinquenta horas para nada. Absolutamente nada! Valeria muito mais se você tivesse passado essas malditas cinquenta horas vendendo amendoim na rua. Como viveremos assim?
- Um homem deve fazer o que ama.
- Não acredito que estou ouvindo isso. Você nem ao menos vai à clubes de poker profissional, você fica nessa maldita internet, parece um pré adolescente jogando RPG. Esses sites devem ser a maior enganação de trouxas que existe no mundo moderno.
- O Pokerstars é um site confiável. Já discutimos isso aquele dia. Você concordou comigo.
- Ok, eu concordei. Mas já faz uma eternidade que você tenta isso e não consegue droga nenhuma. Além disso, só vejo você jogar no máximo duas horas de todo o tempo que você tem livre. No resto você fica fazendo absolutamente nada na internet. Minto, você fica correndo atrás de piriguetes em redes sociais.
- Para com isso.
- E fica tentando fazer sucesso com aquela bandinha ridícula(...)
- Não é uma banda, é um projeto! E você está me ofendendo.
- Claro, me desculpe. Você é um artista. Se não é poker, é música, bandas, digo, projetos. Se não é isso são contos, filmes(...)
- Nunca fiz um filme.
- Até agora não, mas passa grande parte da vida assistindo esses DVD’s que seus amigos te gravam. Pura perda de tempo. Carlos, eu não ligaria se você realmente corresse atrás de um sonho. Mas acontece que você não sabe o que quer! Você quer fazer tudo, você faz tudo e não se aperfeiçoa em nada! Não acha que seria uma boa pelo menos voltar a prestar concursos? Quem sabe você não arranja algo melhorzinho e assim pode ter mais tranquilidade para tentar seus projetos paralelos que você tanto ama.
- Pff, concursos. Isso sim é o maior engana-trouxas do mundo moderno.
- Mas você já passou em um. E mesmo sendo um salariozinho ridículo, nos ajuda muito mais que seu poker e suas músicas. Admita!
- Foi pura sorte, aquele lugar é a maior bizarrice que existe, acredite. Só tem xarope. Qualquer pessoa que vá para lá é lucro para eles. Não foi mérito nenhum ter passado nisso.
- Acho que você está se subestimando.
- Não estou, pode acreditar. Além do mais, se eu fosse para outro lugar teria que pegar a porra de um ônibus ou metrô lotado todo santo dia. Ou ambos. Ida e volta! Teria que chegar no horário certo. Perderia três horas a mais de todos os meus dias. Pra quê? Pra ganhar quatrocentos contos a mais? Oitocentos, que seja! Eu seria extremamente infeliz. Seria sorte eu não me suicidar no primeiro mês.
- Agora já está fazendo drama.
- Não estou fazendo drama. Sou eu que tenho que aguentar aquela merda todo dia enquanto você fica em casa! Chego em casa e não posso descansar, tenho que ouvir você na minha orelha o tempo todo! Encheção de saco a noite toda! Ah, vá se foder, ok?
- Nossa, eu só estou tentando ajudar. Ajudar você a tomar um rumo definitivo na sua vida. Você sabe que eu te amo.
- Sei. Eu também te amo. Mas eu não sei, não vejo esforço de sua parte também. Sabe, existem inúmeras formas de uma mulher ganhar dinheiro, ajudar nas despesas de casa. Você tem um corpo bonito(...)
- Quê!? Um corpo bonito? Eu vou fingir que não ouvi isso.
- Ué...
- Eu não acredito nisso. Você quer que eu me prostitua!? Há, eu realmente não acredito nisso. É isso que você quis dizer!?
- Eu não sei, só estou pensando.
- Ah, vá se foder antes que eu me esqueça! Seu filho de uma puta! É isso que você acha que eu sou? A porra de uma prostituta!? Eu não acredito nisso. Imagine o que sua mãe pensaria ao ouvi-lo falar comigo dessa forma. Vá se foder, seu filho de uma puta!
- Calma, você está exagerando. Eu não quis dizer isso.
- Eu sei o que você quis dizer, não sou burra. Não venha você ainda me chamar de burra depois de tudo isso.
- Eu só acho que você poderia muito bem ajudar ao invés de só ficar no meu pé. Pode fazer algo que goste também, crochê, tricô sei la.
- Crochê? Tricô? Você tá de palhaçada.
- Eu não sei, qualquer coisa. Não sei se você sabe, mas mulheres também podem prestar concursos, se é isso que você tanto deseja.
- Eu já esqueci tudo que aprendi na escola, não tenho chance alguma, você sabe disso. Você não, você tem chance, já passou em um.
- Eu também já esqueci tudo. Acredite, todos que fizeram a prova que eu fiz foram chamados pra trabalhar lá, independentemente da nota. Foi pura sorte.
- Não sei se posso acreditar nisso. Sempre te considerei uma pessoa muito inteligente.
- Inteligência não tem nada a ver com isso. Você precisa ser um bitolado pra passar nessas merda de concurso. Um retardado, débil mental sem vida. Eu não tô com cabeça agora pra isso, sinceramente. Precisaria de meses ou anos de cursinho para ter alguma chance. Acredite!
- Eu te amo.
- Eu também te amo. Desculpe se te ofendi. Eu não quis dizer(...)
- Eu sei o que você quis dizer, mas tudo bem. Não falemos mais nisso. Você está com fome? Quer que eu prepare algo?
- Se estou! O que temos?
- Ovo.
- Ovo de novo?
- Pois é.

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