terça-feira, 17 de maio de 2011

os grandes artistas

os grandes artistas são drogados
tomam ácido, cheiram pó
injetam e fumam outras coisas.

mas que posso eu fazer
se com três tragos num maldito baseado
eu vejo o mundo em seguidos replays
enfrento o diabo
entendo deus
fico preso no inferno
entro e saio da matrix
acredito na bíblia
penso em pregá-la
sou vítima de um plano conspiratório
passo quarenta minutos dando voltas ao redor de uma mesa
sem o menor controle sobre meus passos?

os grandes artistas são drogados
tomam ácido e cheiram pó.

mas que posso eu fazer
se com três tragos num maldito baseado
eu vejo o mundo em seguidos replays
enfrento o diabo
entendo deus
fico preso no inferno
entro e saio da matrix
acredito na bíblia
penso em pregá-la
sou vítima de um plano conspiratório
passo quarenta minutos dando voltas ao redor de uma mesa
sem o menor controle sobre meus passos?

os grandes artistas são drogados
injetam e fumam coisas.

mas que posso eu fazer
se com três tragos num maldito baseado
eu vejo o mundo em seguidos replays
enfrento o diabo
entendo deus
fico preso no inferno
entro e saio da matrix
acredito na bíblia
penso em pregá-la
sou vítima de um plano conspiratório
passo quarenta minutos dando voltas ao redor de uma mesa
sem o menor controle sobre meus passos?

o álcool me dá diarreia.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Um homem deve fazer o que ama

Noite poluída. Aline e Carlos. É ela quem quebra o silêncio:
- E então?
- Oi.
- Que faremos?
- Que faremos sobre o quê?
- Sobre o dinheiro, o quê mais?
- Sobre o dinheiro...
- É. O quê faremos sobre o dinheiro?
- Você nunca está satisfeita.
- Você prometeu.
- Eu sei.
- Não podemos continuar assim, você sabe.
- Eu sei.
- Não perdoarão mais um mês de aluguel, você sabe.
- É.
- É o quê, Carlos!? O quê você fará? Só vejo você nesse maldito computador a noite toda. Estagnado no seu empreguinho de manhã e de tarde, e de noite esse maldito computador. Já faz três anos, você prometeu não se acomodar.
- Lá vem você com esse tom de voz.
- Você está numa boa, né? Não dá a mínima se amanhã ou depois nos jogarem no olho da rua e tenhamos que ir viver num cortiço qualquer, numa favela.
- Tendo banda larga não vejo do que reclamar.
- O quê!?
- Estou brincando.
- Sim, esse é problema, você está brincando. Está sempre brincando! Não vê que isso é sério. Eu não sei o que ainda estou fazendo com você, sinceramente.
- Você me ama.
- Infelizmente.
- Amor, você pode não perceber ou não acreditar, mas eu estou me esforçando.
- Há, claro!
- Mês passado ganhei quatrocentos e setenta dólares jogando. É mais do que ganho na Secretaria.
- É e no retrasado perdeu trezentos e dez, e no re-retrasado perdeu umas cinquenta horas para nada. Absolutamente nada! Valeria muito mais se você tivesse passado essas malditas cinquenta horas vendendo amendoim na rua. Como viveremos assim?
- Um homem deve fazer o que ama.
- Não acredito que estou ouvindo isso. Você nem ao menos vai à clubes de poker profissional, você fica nessa maldita internet, parece um pré adolescente jogando RPG. Esses sites devem ser a maior enganação de trouxas que existe no mundo moderno.
- O Pokerstars é um site confiável. Já discutimos isso aquele dia. Você concordou comigo.
- Ok, eu concordei. Mas já faz uma eternidade que você tenta isso e não consegue droga nenhuma. Além disso, só vejo você jogar no máximo duas horas de todo o tempo que você tem livre. No resto você fica fazendo absolutamente nada na internet. Minto, você fica correndo atrás de piriguetes em redes sociais.
- Para com isso.
- E fica tentando fazer sucesso com aquela bandinha ridícula(...)
- Não é uma banda, é um projeto! E você está me ofendendo.
- Claro, me desculpe. Você é um artista. Se não é poker, é música, bandas, digo, projetos. Se não é isso são contos, filmes(...)
- Nunca fiz um filme.
- Até agora não, mas passa grande parte da vida assistindo esses DVD’s que seus amigos te gravam. Pura perda de tempo. Carlos, eu não ligaria se você realmente corresse atrás de um sonho. Mas acontece que você não sabe o que quer! Você quer fazer tudo, você faz tudo e não se aperfeiçoa em nada! Não acha que seria uma boa pelo menos voltar a prestar concursos? Quem sabe você não arranja algo melhorzinho e assim pode ter mais tranquilidade para tentar seus projetos paralelos que você tanto ama.
- Pff, concursos. Isso sim é o maior engana-trouxas do mundo moderno.
- Mas você já passou em um. E mesmo sendo um salariozinho ridículo, nos ajuda muito mais que seu poker e suas músicas. Admita!
- Foi pura sorte, aquele lugar é a maior bizarrice que existe, acredite. Só tem xarope. Qualquer pessoa que vá para lá é lucro para eles. Não foi mérito nenhum ter passado nisso.
- Acho que você está se subestimando.
- Não estou, pode acreditar. Além do mais, se eu fosse para outro lugar teria que pegar a porra de um ônibus ou metrô lotado todo santo dia. Ou ambos. Ida e volta! Teria que chegar no horário certo. Perderia três horas a mais de todos os meus dias. Pra quê? Pra ganhar quatrocentos contos a mais? Oitocentos, que seja! Eu seria extremamente infeliz. Seria sorte eu não me suicidar no primeiro mês.
- Agora já está fazendo drama.
- Não estou fazendo drama. Sou eu que tenho que aguentar aquela merda todo dia enquanto você fica em casa! Chego em casa e não posso descansar, tenho que ouvir você na minha orelha o tempo todo! Encheção de saco a noite toda! Ah, vá se foder, ok?
- Nossa, eu só estou tentando ajudar. Ajudar você a tomar um rumo definitivo na sua vida. Você sabe que eu te amo.
- Sei. Eu também te amo. Mas eu não sei, não vejo esforço de sua parte também. Sabe, existem inúmeras formas de uma mulher ganhar dinheiro, ajudar nas despesas de casa. Você tem um corpo bonito(...)
- Quê!? Um corpo bonito? Eu vou fingir que não ouvi isso.
- Ué...
- Eu não acredito nisso. Você quer que eu me prostitua!? Há, eu realmente não acredito nisso. É isso que você quis dizer!?
- Eu não sei, só estou pensando.
- Ah, vá se foder antes que eu me esqueça! Seu filho de uma puta! É isso que você acha que eu sou? A porra de uma prostituta!? Eu não acredito nisso. Imagine o que sua mãe pensaria ao ouvi-lo falar comigo dessa forma. Vá se foder, seu filho de uma puta!
- Calma, você está exagerando. Eu não quis dizer isso.
- Eu sei o que você quis dizer, não sou burra. Não venha você ainda me chamar de burra depois de tudo isso.
- Eu só acho que você poderia muito bem ajudar ao invés de só ficar no meu pé. Pode fazer algo que goste também, crochê, tricô sei la.
- Crochê? Tricô? Você tá de palhaçada.
- Eu não sei, qualquer coisa. Não sei se você sabe, mas mulheres também podem prestar concursos, se é isso que você tanto deseja.
- Eu já esqueci tudo que aprendi na escola, não tenho chance alguma, você sabe disso. Você não, você tem chance, já passou em um.
- Eu também já esqueci tudo. Acredite, todos que fizeram a prova que eu fiz foram chamados pra trabalhar lá, independentemente da nota. Foi pura sorte.
- Não sei se posso acreditar nisso. Sempre te considerei uma pessoa muito inteligente.
- Inteligência não tem nada a ver com isso. Você precisa ser um bitolado pra passar nessas merda de concurso. Um retardado, débil mental sem vida. Eu não tô com cabeça agora pra isso, sinceramente. Precisaria de meses ou anos de cursinho para ter alguma chance. Acredite!
- Eu te amo.
- Eu também te amo. Desculpe se te ofendi. Eu não quis dizer(...)
- Eu sei o que você quis dizer, mas tudo bem. Não falemos mais nisso. Você está com fome? Quer que eu prepare algo?
- Se estou! O que temos?
- Ovo.
- Ovo de novo?
- Pois é.

domingo, 15 de maio de 2011

Estupre sua mãe

Vinte e duas horas e quarenta e três minutos.
- Você viu no Datena?
- O quê?
- Aquele cara que abusou da filha.
- Ah.
- Viu?
- Li algo por cima na internet.
- E então?
- Então o quê?
- Que me diz?
- Que me diz o quê?
- O cara que abusou da filha. Também acha que ele merece uma vida digna na prisão, que alimentem o filho da puta com nosso dinheiro suado? O meu dinheiro, o seu dinheiro, o do cara que não consegue chegar em casa a tempo de dar um beijo de boa noite no filho com ele ainda acordado?
- Ah, você ainda tá nisso.
- É, eu ainda tô nisso, não era disso que a gente tava falando?
- Ok, podemos continuar nesse assunto se é o que você deseja.
- E então?
- O quê?
- Você tá chapado ou o quê? Perguntei se você acha que o filho da puta merece(...)
- Ele não teve escolha.
- Ahn?
- O cara que abusou da filha.
- Eu sei, o cara que abusou da filha. O que você disse de não ter escolha?
- O cara era um xarope, estou certo de que foderam com a cabeça dele quando ele era pequeno ou qualquer merda assim.
- E isso pra você isso justifica?
- A questão não é justificar, o cara não quis isso. O cara é isso!
- Isso o quê?
- Jorjão, traz mais uma!
- O cara é isso o quê?
- O cara é louco, a merda já tá feita, de que vai adiantar torturar o cara, fazer ele comer merda e o caralho a quatro? A filha do cara não vai melhorar em nada com isso. Isso não é justiça, é vingança!
- Tá, mas o quê você disse que ele não teve escolha?
- Ninguém opta por abusar da filha. O cara era xarope, você nunca vai entender porque sempre levou uma vida normal, sempre foi mimado por seus pais, teve tudo que queria.
- Ok. Você tá me dizendo que o pai abusava dele quando pequeno e por isso ele teve que fazer o mesmo com a filha?
- Eu não sei se o pai abusava dele, pode ser! Apenas sei que alguém fodeu com a cabeça dele, provavelmente quando ainda era pequeno.
- E fica por isso mesmo então?
- Você quer o quê? Ok, você quer torturar o cara, você tá com raiva, você e todas as senhoras que assistem o Datena. Querem cortar o saco do cara fora.
- Você disse que o cara não teve escolha!
- De certa forma ninguém tem escolha.
- O cara não tinha a escolha de engolir o rancor que tinha do pai, procurar um psicólogo, tomar remédios, qualquer merda? Ele tinha que abusar da filha? Única opção?
- Você acha que você tem alguma escolha?
- Do que você tá falando? Não vai dizer que tu acredita em destino, signo, essas merda? Vá se foder.
- Não esse tipo de destino que você está acostumado a ouvir.
- Ah, claro. Qual então?
- Estupre a sua mãe.
- Quê?
- Estupre a sua mãe.
- Que estupre a mãe, que porra é essa?
- Você não está me dizendo que tem escolhas? Me prove, estupre a sua mãe!
- Vá se foder, quem é que vai estuprar a mãe?
- Exatamente! Ninguém com uma criação normal vai fazer isso. Ninguém escolhe, é uma coisa biológica!
- Pff...
- Na verdade ninguém escolhe nada, é tudo física, ação e reação. Tu só tá aqui bebendo e falando comigo por causa de uma serie de eventos que de certa forma te “obrigaram” a estar aqui.
- Cala a boca, isso eu posso te provar. Quer que eu saia agora e vá pra casa? Eu tenho a escolha!
- Não é assim que funciona. Se acontecer de você se levantar e ir pra casa é porque a discussão chegou a esse ponto em que você se sentiu desafiado. E só vai levantar e ir embora por isso. Pra tentar me provar uma coisa, mas não vai conseguir provar nada, só vai confirmar o que eu to tentando te falar o tempo todo. Ninguém escolhe. O livre arbítrio é uma ilusão.
- O livre arbítrio é uma ilusão...
- O livre arbítrio é uma ilusão!
- E se eu te der um soco?
- Só vai tar dando porque estamos falando sobre isso. Mas eu sei que você não vai dar.
- Ah não?
- Você pode até me dar um soco no braço, qualquer merda assim. Não daria um soco na cara pra me nocautear. Pra você ver como o ser humano é previsível. AI CARALHO, SAI FORA!
- Talvez eu esteja te entendendo um pouco. Mas acho meio furado.
- Me mostre um cara que foi abusado quando pequeno que te mostro um cara com tendência a abusar de crianças maior do que a media da população.
- Talvez faça sentido.
- Me mostre um padre que te mostro um pedófilo.
- Haha.
- Zoeira. Mas a ideia é essa.
- Ok. Mas e daí?
- O quê?
- E pra que serve tudo isso? Digo, de que serve saber tudo isso?
- De nada.
- Legal.
- Tem uma comunidade no orkut que os caras falam sobre isso, depois te passo o link se você quizer. É uma teoria antiga, não lembro o nome do cara agora. Um filósofo.
- Manda, vou ler essa merda toda com calma e te provar que você tá falando merda.
- Achei que você tinha dito que estava começando a entender.
- Me manda lá, depois te falo, não aguento mais essa merda.
- Beleza.
- Aproveita e manda aquelas fotos da Patrícia que tu tá embaçando pra passar já tem mais de três semanas. Sabe do que eu tô falando, né?
- Haha, vá se foder.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Horário de almoço

Allan não suportava hippies do centro pondo em dúvida sua humildade.
Sentado no chão com suas pequenas tralhas à venda, organizadas em cima d'um pano verde encardido, um deles convida:
- Cabelo, chega ae!
- Desculpa, tenho que ir lá... – diz andando a passos lentos.
- Pô, chega aeee! – fala expressando indignação, rosto de criança prestes a chorar.
- Pô, não dá, cara. Desculpa, tenho que ir lá...
Olha nos olhos do vagabundo, abre e mostra as palmas das mãos tentando demonstrar compaixão e pressa.
- Aahh, chega aeeeeeeeee, bicho... – e a expressão vai aos poucos se transformando num sorriso triste.
Allan continua mostrando as palmas das mãos e comprimi os lábios como forma de dizer “É uma pena, quem sabe outra hora”.
O sorriso triste vira sorriso. O sorriso vira risada. Então riem juntos como velhos amigos passando por alguma situação estúpida.
Allan segue seu caminho sentindo-se de certa forma mais feliz. A raça humana tem lá suas preciosidades.
Olha no relógio e sobe a rampa final da Av. São João pensando que ainda tem uns doze minutos de horário de almoço para gastar e que provavelmente os passará sentado no sofá do Protocolo Geral.

Meio ambiente

Rua Barão de Itapetininga. Um conglomerado de pessoas tentando te pegar para responder pesquisas, fazer cartões de crédito, fazer cartões de desconto no teatro, doar dinheiro para uma boa causa, comprar revistas velhas e colocar seu nome numa lista para receber orações. Empreguinho filha da puta.
Pare em qualquer um e está fodido. Ou perde dinheiro, ou tempo ou ambos. Os bonzinhos são os que mais se fodem. Tímidos, bonzinhos e inseguros que não querem se passar por grosseiros. Alvo perfeito. Eu era um deles.
Mas com o tempo você adquiri certa técnica. De manhã, cara de atrasado. No fim da tarde, cara de estressado, olhando para baixo. Não como um depressivo. Passos largos, olhos semicerrados, tipo pensando em matar o chefe.
Outra dica é você grudar nas costas de quem estiver andando à sua frente. Vão abordar essa pessoa e te deixar livre. Quase infalível.
O foda é que agora eles atacam em grupo.
Ao longo do Viaduto do Chá fica um corredor da morte composto de infelizes com coletes onde se lê “Greenpeace” ou “Save the Children”. Tática de guerra.
Dez e cinco da manhã e lá vou eu em um dia como outro qualquer. Antes mesmo de entrar na Barão avisto três mulheres de camisetas e bonés brancos. Calças jeans azul, pranchetas, papel, caneta. Uma vem em minha direção:
- Responde uma pesquisa?
- Desculpa, atrasado.
- Responde uma pesquisa? – ouço-a perguntar para o próximo.
Entro na rua. Passo por três homens-placa, dois deles com uma pequena multidão ao redor lendo seus anúncios de empregos e tomando notas. Por pouco não piso na perna de um cara dormindo no meio da rua, embrulhado com caixas de papelão, apesar do calor.
Avisto três ou quatro “Save the Children”, calculo o melhor caminho, colo nas costas de um cidadão e me livro de todos.
Aí vem o simpático e velho mendigo com vestimentas feitas de sacos de lixo preto. A barba e o cabelo de sempre. Tem uns doze anos que conheço esse cara de vista. Algumas vezes ele amarra vários pedaços de papelão uns aos outros e usa-os como roupa no lugar dos sacos. O critério que ele usa para escolher a roupa do dia eu desconheço.
Um cara distribui revistas como se fossem panfletos. As pessoas ignoram. Quando passo, ele diz: “Uma revista, jovem. Pode pegar”. Já conheço a jogada, aceito uma só pra sacanear. Finjo não reparar no contato visual que ele tenta, mantenho o passo acelerado, ele faz um esforço para me alcançar:
- Poderia estar ajudando com uma moeda de qualquer valor?
- Oi?
- Poderia estar nos ajudando com uma moeda de qualquer valor?
- Não tenho, desculpa.
- Ah, então, por favor... – estende a mão para pegar a revista de volta. Era uma revista encalhada de carro ou qualquer merda do tipo. Mantenho o passo rápido, o olhar distante e devolvo a revista sem dar uma palavra. Fiz o otário correr por quase meio quarteirão.
Ali está o jovem mendigo na parede de uma das entradas da estação de metrô. Sentado ao lado de suas tralhas com a mesma expressão de ontem e anteontem, como se a vida fosse bela e ele fosse Jesus Cristo. A barba e o cabelo de sempre.
Uma mulher segurando o que parecia ser um cartão de crédito enorme feito de cartolina plastificada. Calças azuis, camiseta laranja e branca:
- Deseja fazer o “CrediFácil” hoje? Sem anuidade, taxa de manuten(...)
- Obrigado.
Lá está o pastor barbudo andando pra lá e pra cá, berrando e dando tapas na velha bíblia.
Aguardo o sinal de pedestres ficar verde. Fica. Tão logo piso na outra calçada vem um “Greenpeace”. Parado cinco passos à minha frente ele pergunta em voz alta:
- Você se preocupa com o meio ambiente?
- (...) Mais ou menos... – respondo logo ao seu lado.
- Mais ou menos?! Tem que se preocupar! – diz ele ficando para trás.
“Mais ou menos”. Que merda de resposta foi essa? Fui pego de surpresa. Deveria ter respondido que sim apenas balançando a cabeça e continuado a andar. Ou apenas olhado para a cara do infeliz sem responder porra nenhuma. O cara não tem intimidade o suficiente para me perguntar se me preocupo com o meio ambiente. É o mesmo que eu chegar pra qualquer pessoa na rua e falar: “Você tem medo de pegar AIDS?”.
Mas tudo que consegui pensar para responder naquele breve instante foi: “Mais ou menos”.
Tudo bem. A vida é assim. Não se pode ganhar sempre.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Queijo ou acerolas

Põe o pé na calçada. O Edifício Itália estende-se na outra calçada à frente. Uma vez, quando ainda era pequeno, jazia um corpo estraçalhado em um dos pisos de lá, uma pequena área aberta, de frente ao restaurante que funcionava num dos primeiros andares. Dava pra ver razoavelmente bem da janela do seu apartamento no 4º andar com altura de 6º. Dois andares de sobreloja.
Você sempre vai imaginar que o cara se jogou lá do último andar ou do terraço. Era o Edifício Itália, porra! Pra que alguém iria até o maior prédio disponível pra se jogar do 11º ou do 12º andar?
Parece que foi do 10º. Um faxineiro. Acidentalmente. 
Num minuto você está lá limpando o vidro, assobiando, pensando na hora que vai largar aquela merda toda e voltar pra casa. No outro já não existe. Pequeno desequilíbrio, susto, escorregão, o coração quase salta do peito, bate com a canela na quina, bate com a mão no concreto, racha a unha, solta um gemido baixo, recebe a maior descarga de adrenalina que seu corpo já recebeu em toda vida, o céu, o concreto, os vidros ainda parcialmente sujos, tudo visto de um ângulo inédito, uma brisa forte, uma pancada mais forte e já não existe.
Faxineiro. Décimo andar do segundo edifício mais alto do país. Acidente de Trabalho. Nada romântico. Nenhuma mulher envolvida.
Faziam mais de dez anos. Mas ficou marcado. Primeiro morto que viu na vida. Um dos únicos, na verdade.
Quando vieram ver e cobrir o corpo, um dos caras recolheu o que parecia ser o relógio do morto e aproximou do ouvido, como que verificando se ainda funcionava. Curiosidade esquisita.
Viu outro morto uma vez, também lá perto, em frente a uma loja. Mas já estava coberto. Dava pra ver os pés.
O antigo ponto de táxi estende-se na mesma calçada à frente. Mas não se sentia na obrigação de dar bom dia a ninguém de lá. Na verdade só considerava um rosto conhecido ali, um senhor grisalho que nem devia se lembrar dele. Uma vez, quando ainda era pequeno, aconteceu de seu pai telefonar do trabalho para casa e contar à sua mãe que estava passando mal e vomitando. Após cerca de 10 minutos sua mãe estava em casa passando mal e vomitando. Após cerca de 7 minutos ele estava em casa passando mal e vomitando e sua mãe ligando para seu pai no trabalho para contar o fato. Família unida. Maldito queijo trazido de avião da cidade de seus avós. Ou teriam sido as acerolas?
Entraram então no táxi do senhor grisalho. Ele e a mãe no banco de trás e o irmão no banco da frente. Um saco de vômito na mão de cada um, exceto na de seu irmão que estava bem. Não comeu do queijo. Não tomou do suco de acerola.
O que passaria pela cabeça de um taxista numa hora dessas?
De quando em quando sua mãe esguichava dentro saco. Depois era sua vez. Depois sua mãe e depois ele. E o taxista mantendo escondidos seus pensamentos. Era um bom profissional. Seu irmão lá, no meio do fogo cruzado.
Enfim chegaram ao destino. O hospital. Desceria com sua mãe. O irmão seguiria viagem até o trabalho do pai. A mãe abre a porta do carro e antes de sair dirige-se ao irmão:
- Ó, quando tu chegar na banca, tu pega um paninho molhado e dá uma limpadinha aqui, viu?
- Tá.
Uma inofensiva gota de vômito no estofado. Sua mãe bem que podia ter deixado essa passar batido.
Nunca viria a esquecer o olhar carregado de pensamentos e sentimentos misteriosos que o senhor grisalho apressadamente lançou em direção ao banco traseiro.

domingo, 8 de maio de 2011

Vai com deus

Despertador do celular.
Baixo.
Crescente.
Alto.
Irritante.
A mão já vai automática para dentro da gaveta parcialmente aberta à esquerda. Busca-o cegamente em meio a meias e cuecas cuidadosamente dobradas, agarra-o e aperta o botão. Pequeno alívio. Pensamento confuso.
Cena idêntica aconteceu ontem e anteontem.
Sofrimento.
Inconformismo.
Em cinco minutos o barulho recomeça.
As alternativas: Lutar para continuar no torturante mundo que despertou ou simplesmente relaxar e voltar pra onde estava. Tentador.
Escolha fácil, não fosse pela leve consciência de que em quatro minutos o barulho recomeça. Busca os óculos na mesma gaveta tentando não tocar as lentes. Nem sempre consegue.
Barulho de telefone.
Alto.
Irritante.
Agora precisa concentrar todas suas forças se não quiser ouvir o toque mais uma ou duas vezes. Levanta-se da cama da forma como os ortopedistas não recomendam. Segundo toque.
- Alô.
- Oi, já tá acordado?
- Aham.
- Tá bom, tchau, tchau.
- Tchau.
Mesma cena aconteceu ontem e anteontem.
Seu pai ligava todos os dias no mesmo horário para certificar-se de que já havia acordado. Era uma geração fodida. Décadas atrás estaria casado, criando um pequeno pentelho e seria responsável, ou ao menos aparentaria. Cabelo curto, um bigode talvez, roupas decentes. Mas hoje era apenas um adolescente. Eterno adolescente. Uma geração fodida num país fodido.
Na verdade o horário do telefone podia variar de um a três ou quatro minutos. O que dava mais ou menos tempo para lamentar-se na cama em seu estado semi zumbi e pensar em suas alternativas.
Calça jeans, mesmo no calor. Qual seria o problema das bermudas? Parecer mais adulto. Imagem é com o que todos se importam.
Imagem.
Camiseta velha, desbotada. Disso não podiam reclamar. Ou ao menos ainda não haviam tomado coragem para isso.
Tinha um cara de outro setor que costumava ir todos os dias de bermuda. Até que um dia o viu de calça. E em todos os outros dias também. Como o teriam abordado? O serviço público é estranho, engraçado.
Meia velha na gaveta. Cuidadosamente dobrada.
Sempre busca a pior roupa disponível. A mais velha. Até o momento que sua mãe julgava-as inaceitáveis e as escondia. Não doava. Escondia. Talvez quem recebesse aquilo como doação se sentisse ofendido. Sabia que muita gente se livrava de roupas em perfeito estado.
“Enjoei”.
“Ai, preciso dar uma renovada no meu guarda roupas”. 
Qual frase era mais gay que essa?
Usava as mesmas roupas que a seis anos atrás. Já tinha enjoado, mas usava. Ideologia ou coisa de adolescente? Um dia passaria, talvez.
 Além disso, uma roupa preta com estampa colorida vai mudando. Se você enjoa dela, use por mais quatro anos e ela vira cinza com estampa indefinida, quase sumindo. Imaginava que depois de mais três anos ela ficaria larga, esquisita e com pequenos furos espalhados. Aí poderia usá-las como pijama. Pijama novinho, que demoraria mais uns quatro anos para enjoar. Depois os rasgos aumentariam, viraria uma espécie de trapo. Pano de chão então seria um bom destino. Até sumir. Do pó viestes, ao pó retornarás.
Mas antes delas virarem pijama sua mãe as escondia e ele não tinha mais ânimo de brigar para consegui-las de volta. Ainda tinha muita roupa velha para continuar seu silencioso protesto. Talvez tenha exagerado na aquisição de camisetas em algum ponto de sua adolescência. Real adolescência. Tinha o guarda roupas eterno.
O tênis fica num canto da sala, ao lado do sofá menor.
Música. CD no aparelho de DVD.
O Som da TV não era lá essas coisas, mas era melhor que o das caixinhas do computador, além do mais, já estava acostumado.
Maçã. Sem casca.
Sofá.
Cabelo, desodorante, remédios, água, banheiro, dentes.
O mesmo de ontem e anteontem.
Mochila.
- Tchau!
- Tchau, vai com deus.
Chave. Porta.
- São Miguel Arcanjo com suas asas protegei. São Miguel Arcanjo com suas asas defendei. São Miguel Arcanjo(...)
Via pela fresta da porta que já ia fechando sua mãe recitando o mesmo de sempre. Fazia-o com uma das mãos para cima, como aquela saudação nazista, mas com o braço parado num ângulo um pouco diferente e a mão aberta semi relaxada.
Botão de descer do elevador.
O elevador mais lento do mundo.
Por que raios um deles estava sempre parado? Tudo seria mais dinâmico se eles funcionassem em perfeita sincronia. Um subindo, o outro descendo. E você saberia que o que está descendo vai parar, abrir, fechar e você seguirá sua vida.
Morava no 4º andar, mas tinha altura de 6º. Dois andares de sobreloja.
Lembrava vagamente de fazer algo na companhia de sua mãe em uma das sobrelojas quando era pequeno. Cortar o cabelo talvez. Ou seria uma memória falsa? Acontece muito disso e as pessoas não se dão conta. São muito seguras de si.
Hoje em dia pareciam ser dois andares inúteis. Talvez servissem de depósito para equipamentos de limpeza e manutenção. Talvez. Nunca viria a saber.
Quando namorava pensava ser um bom lugar para se divertir com as garotas. Imaginava a cena com detalhes. Imaginava então um porteiro, faxineiro ou rapaz de manutenção aparecendo para verificar. Constrangimento.
Nunca pôs o plano em ação, nenhuma de suas ex namoradas tinha o espírito aventureiro que a maioria dos casais de filmes ou de amigos e conhecidos pareciam ter.
Um dos elevadores sempre estava no 9º andar. Parado. Estranhamente parado.
O outro estava no Térreo. Depois de séculos parado lá, começava a subir. Mas pararia no 4º andar? Ou subiria até o 19º, permaneceria lá por 1 minuto e só então começaria a descer, parando antes em meia dúzia de andares acima do seu? Nunca dava pra prever.
Por que não funcionavam em perfeita sincronia? Por que caralho a porra fica lá parada indefinidamente no 9º andar pra depois que você não precisa mais dele, descer? Ou descer só depois que o outro o ultrapassa. Qual o sentido disso?
Ao menos o botão tinha uma luzinha verde que acendia depois de apertado. Isso poupa repetidas apertadas e aquele sentimento de “será que apertei o botão forte o bastante?”. Algumas pessoas parecem não se livrar desse sentimento mesmo com a luzinha. Sua mãe era uma delas. Mas ele não sofria desse mal. Outras apertavam o botão de subir e o de descer simultaneamente. Mas ele também não sofria desse mal. Outras apertavam o botão de descer quando queriam subir. Isso ocorria com maior frequencia no Térreo. Ele não sofria desse mal. As pessoas são engraçadas.
Já no Térreo depara-se com a dupla de porteiros.
- Bom dia.
- Bom dia.
- Bom dia.
Timidamente, nada animador. Na maioria das vezes era mais algo como:
- Opa.
- Opa.
Ou apenas um cumprimento inclinando a cabeça para baixo se algum dos porteiros o olhasse. Caso estivessem ocupados ou distraídos preferia não interromper. Pra que serve um “bom dia” afinal?
Quando era menor sua timidez conseguia ser ainda maior. Não dava “oi”, “bom dia” nem “obrigado”. E todos com certeza o achavam metido. Quanta injustiça o mundo comete as vezes. Se conseguissem enxergar as coisas como eram de dentro de sua cabeça entenderiam. Hoje não sofria tanto desse mal.